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_Linha de espera, por favor aguarde
texto de diário | 14.11.2022_

 

        Quando você era pequeno, devia ter uns 8 anos, sentia muito estresse no ambiente da escola. Todo mundo parecia falar demais, gritar demais, ter energia demais, mas nunca se interessar pelas aulas. Você era diferente, no geral. Lembro-me de ser um pensamento recorrente. Um dia a turma toda estava fora de controle e a professora simplesmente não conseguia se articular em aula, era muito feio. Você estudava em um colégio de freiras, elas moravam no último andar do prédio. Rezava o pai-nosso e ave maria todos os dias antes de começar a aula. As vezes obrigavam a gente a ir às missas da capela e nos eventos católicos da escola. Tinha aulas sobre o Antigo e o Novo Testamento semanalmente, e foi obrigade a frequentar a catequese da escola.

          E nesse dia, você, esponja que é, sentiu um tempo ruim pairando a sala de aula. Uma colega virou para trás e perguntou se você poderia emprestar seu apontador. Você disse que ele era meio ruim e entregou para ela. A professora chamou pelo seu nome da época, a sala emudeceu, e ela te mandou calar a boca. Simples assim. Você ficou com tanta raiva que seguiu o mandamento dela teimosamente pelo resto do dia. Voltou para casa chorando e passou a escrever no papel para se comunicar com os amigues e com a família.

          E desde então eu escuto muito as outras pessoas. Mas, quando eu quero me escutar, meu corpo não responde. Eu sempre ligo para mim, mas ninguém nunca me atende. Sempre procuro reparar-me com aquela criança que nunca entendeu a censura, mas também nunca parou de reproduzi-la. Eu gostaria que meu corpo cessasse essa batalha contra ele mesmo.

          É comunicado desde sempre: aos 10, eu não acho homens musculosos atraentes. Aos 13, eu não quero menstruar. Aos 14, acho que eu gosto da Gi. Aos 15, se eu tivesse nascido com um pênis tudo seria mais fácil. Aos 16, sou artista. Aos 17, sou trans e amo ela. Dez anos depois e a carta do demônio não para de aparecer: eu sei quem você é. Onze anos depois e eu ainda não fiz aquele exame de sangue que ela disse que iria comigo. Isso já deve fazer uns 10 meses. Faz uns seis que eu parei de suplementar as vitaminas. Nunca terminei as cartelinhas de ferro. Sete meses que eu criei para mim mesmo uma cicatriz, para não esquecer de que meu corpo é capaz. Faz 4380 dias que eu roo as unhas.

          Tudo isso para dizer a você que estou tentando entender que meu corpo tem futuro. E, por mais que você nunca me atenda, ainda quero que você possa emprestar seu apontador ruim para a colega da frente e sentir que o espaço também é seu. Eu ainda sinto seu grito-mudo ecoar por dentro. Ainda leio seus escritos e faço anotações por cima. Sei que você provavelmente ainda gosta da Gi, ainda fica estressade com o comportamento dos outros que é diferente do seu e ainda gosta de escutar as outras pessoas. Veja, faz cinco anos que eu estou na minha linha de espera, com o número dando ocupado. Mas ainda acho que você gostaria de conversar comigo, porque tenho muito para te contar.

_Tudo sobre a relação com o outro, ou poema-paisagem

2023_

Recheado de espécies companheiras,

espécies endêmicas,

corpos-estranhos,

mini parafusos e baterias de lítio

divago e recorro a você

que a mim nada pertence

que olha e que venta

cavando rastros de algo que

algum dia esteve aqui

 

Você, que é esse corpo que capto

torneado de vagalumes que piscam

e dos relicários que ainda restam em seu desejo,

te quero longe e bem

para continuar captando os teus poucos relicários

e os vagalumes que te cercam.

 

Nesse instante, você, que é corpo

a sua paisagem,

O corpo é uma paisagem desejante,

e essa foi uma das tantas lições que aprendi além-vida

nessa ideia de querer habitar e ser habitável.

 

Quero "experimentar uma existência que não se rendeu

ao sentido utilitário da vida"

Quero flertar com o silêncio que te habita

e piscar os olhos para guardar o rastro de você

 

Mas eu também sabia que você era

e quando foi declarada a guerra

já era tarde querer desejar você longe e bem

(eu sinto sua falta)

 

E nessa brincadeira de docilidades ruminadas por nós

que atravessaram o campo do eu e você

uma batalha travada

em direção ao tal silêncio

trouxe uma breve sensação do gozo

na dor de ter sido derrubado

 

nem o silêncio

nem a docilidade

nem você voltaram a serem captados por mim

(acho que isso se confunde com uma questão de tempo)

 

"Todos os meus deslocamentos

por princípio figuram num canto de minha paisagem"

 

Meu corpo é um mapa

um mapa do invisível não-dizível

uma mágica,

e quando não capto o teu som

teu silêncio distante

é ruidoso

tuas vozes me calam

tua imagem clama para que um dia eu possa

te vislumbrar mesmo

tendo sido derrubado.

 

Nesse meu corpo ruidoso, enfim

procuro arquivos de você

em que vejo

entre devaneios de movimento

outros sonhos de fuga.

_ Um breve comentário sobre retratar: mãos, unhas, corpos estranhos e a monotipia
texto-registro de Mau-hábito, 2022_

             Queria ter mais tempo para fazer o que eu quero e menos tempo para roer as unhas; busco partículas extras e me encho de nadas. Com uma espécie de autorretrato, num processo fabular, passei a inscrever, analisar, narrar, as reações e sintomas de um corpo cheio de corpos estranhos – e muito ácido. O mau hábito de roer as unhas me acompanha desde que me entendo como “eu” – aproximadamente a 4380 dias. Pensando no tempo de assentamento das questões, do roer intermitente e seus sintomas, comecei a trabalhar os pequenos gestos de uma ação recorrente e posta por mim como inevitável.

          A linguagem da gravura e, mais especificamente, da monotipia, me ajuda a gerar imagens que contenham as minhas mãos presentes – marcas de dedo, toque, pressões. A intenção no gesto de se fazer uma monotipia “suja” também se constitui plasticamente, e, penso, para algo que tende ao visceral, ao violento, e a um desejo de autocuidado que não se realiza. Penso em pulsão de morte, a partir da repetição de imagens e a potência de arquivamento deste autorretrato analítico sobre o corpo, como tenho estudado em Mal de Arquivo, de Jacques Derrida. Regurgitar, jogar para fora um gesto que tenho para perto. A linha do desenho, minuciosa e rabiscada, tem uma relação análoga, aproximada, com o movimento de querer rasgar a pele pra se roer um pouco mais, sem doer. Mas não funciona e, enquanto escrevo, tenho o cantinho do dedo médio esquerdo inflamado e dolorido. Tema e forma se fundem, deste modo, e atestam esse corpo estranho, enfim incômodo, que se retrata.

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